
OLHARES COM SENTIDOS
FERNANDA GIL
PÁGINA PESSOAL
INFÂNCIA

Desde os 5 anos de idade que vivi literalmente no meio da cortiça.
Quando chegavam as pilhas de cortiça, era uma alegria. Decerto haveria muito para explorar: desde subir as "montanhas", fazer um piquenique lá no topo, correr atrás dos lagartos, e por vezes cobras, que vinham no meio, e por vezes apanhar algum..
Lembro-me de uma vez termos atirado um enorme lagarto colorido, bonito, para o poço (ok, as crianças são cruéis). Pensámos que iria morrer, pois andava a boiar de barriga para cima. Todos os dias íamos espreitar. Até que meu pai descobriu a marosca, e se zangou de verdade, pois estávamos a sujar a água do poço. Debruçou-se para tirar o lagarto com um balde preso numa corda.
Com um golpe rápido, atirou água e lagarto para longe: assim que o lagarto tocou na terra, correu a bom correr, desaparecendo num ápice. Não morrera, nem sequer enfraquecera..
Com a cortiça, vinha também a madeira para as caldeiras , onde a cortiça haveria de ser cozida.
Com a madeira vinha uma enorme pilha de pinhas com quilos e quilos e pinhões à mistura, prontinhos a serem "catados" e apanhados... apanhávamos sacos e sacos de pinhões, que com uma pedra descascávamos pacientemente. Era bom comido às mão cheias.
Perderia aqui horas contando as muitas brincadeiras que podíamos fazer usufruindo da cortiças e dos aparelhos que lhe estavam ligados. Mal os operários saiam da fábrica, aquelo era o nosso reino.
E depois havia os pardais...
Eram lindos os pardais. Apanhávamos um para cada um, ainda no ninho. Iam directamente para o balcão da cozinha, forrado com jornais, e um ninho feito de algodão e trapos. Aí os alimentávamos. Conforme cresciam, começavam a andar no nosso ombro. Andavam sempre em liberdade, mas não fugiam. Iam esperar-nos a meio caminho, quando vínhamos da escola primária. E eu vinha, toda orgulhosa, de pardal ao ombro, não autorizando ninguém a tocar-lhe.
Praticamente não tinha brinquedos. A imaginação era a nossa melhor arma: tudo podia servir de brinquedo.
Tive uma infância feliz.
Fernanda Gil, 2012