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COISAS DO ARCO DA VELHA 

COLÓNIA DE FÉRIAS

A minha mãe era doméstica e o meu pai era operário da CUF. Tinham vindo de Janeiro de Cima em finais dos anos 40, os filhos mais velhos ainda pequenos, com este fim em vista, vivendo inicialmente no Barreiro, onde, contava minha mãe, passavam longas horas na fila para adquirir bens alimentares com senhas de racionamento.

 

O facto de o meu pai trabalhar na CUF – típica empresa da Revolução Industrial – trazia-nos algumas vantagens: sempre tive livros escolares gratuitos; bolsa de estudo a partir do secundário (dependia das notas, e eu tive sempre); ia 15 dias, em Agosto, para a Colónia de Férias da empresa (exclusiva para os filhos dos trabalhadores, nas férias de verão, isto até aos 10 anos; posteriormente fui já como monitora). Existia uma Cooperativa da CUF (chamada a Despensa), onde a minha mãe ia comprar as mercearias e outros bens. O meu pai trazia da CUF os adubos e pesticidas para a agricultura, e granulados para os animais. Tínhamos também assistência médica e medicamentos gratuitos, no posto médico e no Hospital da CUF, em todas as especialidades, incluindo análises e exames médicos. O meu pai tinha também um Centro de Medicina no Trabalho, onde tinha de ir regularmente fazer análises e outros exames, que era ao lado do posto médico da CUF do Barreiro.

 

Havia trabalhadores que viviam em casas da empresa, mas não era o nosso caso. Tinha ainda uma Casa da Cultura, com cinema e outros eventos culturais, um complexo desportivo, com pavilhão gimnodesportivo, campo e equipa de futebol (que chegou a jogar na 1ª Divisão Nacional), campos de ténis e pistas de atletismo, para os trabalhadores e seus filhos.

 

A CUF era assim também “dona” das nossas vidas, ajudando por um lado, e por outro fazendo com que o dinheiro e a própria vida cultural e social circulassem quase exclusivamente entre os trabalhadores e a própria empresa, numa economia fechada.

 

O meu primeiro sobrinho nasceu quando eu tinha 11 anos. Fui para casa da minha irmã para a ajudar, e desde essa altura nunca mais deixei de ajudar as que se lhe seguiram. Ia buscá-los à creche, levá-los à ginástica ou outras actividades, tomava conta deles nas férias. Levava-os à praia (normalmente a Tróia, onde chegávamos de comboio e barco), ao cinema, a andar de bicicleta, ou até ao rio. Inventávamos histórias, fazíamos jogos, cantávamos canções. Isso deu-me um gosto muito grande pelo trabalho com crianças. Cheguei a ir fazer animações às creches com o Peres, meu amigo e colega do Liceu (ele fazia de palhaço e eu de boneca, contávamos histórias, etc.), voluntariamente, às sextas-feiras à tarde. Para que as crianças não se assustassem, pintávamo-nos à frente deles, e depois limpávamo-nos também à sua frente. Era gratificante encontrar uma criança na rua que de repente me apontava com um grande sorriso e gritava “olha a Boneca!”.

 

Esta experiência com os meus sobrinhos e outras crianças fez com que mais tarde se tornasse fácil trabalhar na Colónia onde estivera quando criança.

 

O trabalho de monitora na Colónia de Férias da CUF foi uma experiência que me ficou para a vida. Tínhamos de tirar um curso de primeiros socorros (fazer reanimação, agir em caso de afogamento, fracturas em diversas partes do corpo, ou queimaduras, ou simplesmente como posicionar a vítima em caso de suspeita de lesão espinal, etc.), e mais uma pequena formação sobre o trabalho na Colónia, que tinha regras bastante rígidas, sobretudo no que concerne aos aspectos de segurança das crianças. Na praia, por exemplo, as monitoras faziam um cordão humano, de costas para as ondas, dentro do qual as crianças se banhavam; no período fora do banho, dentro do perímetro havia as animadoras, a fazer jogos, distribuir lanches; à volta estavam as que vigiavam, para que nenhuma criança saísse desse espaço. Revezávamo-nos nestas tarefas, entre todo o grupo de monitoras. Tanto as crianças como as monitoras usavam fardas, cada grupo de sua cor (azuis, vermelhas, castanhas, verdes, amarelas), desde as sandálias, aos calções, camisolas e chapéus – era assim mais fácil controlar onde estavam, e contá-los a ver se não faltava algum. Durante 2 semanas eu era literalmente “mãe” de 15 ou 16 crianças entre os 6 e os 7 anos (tive sempre só rapazes, os “azuis”). Acompanhava-os 24 horas por dia. Se algum estivesse doente, eu é que tinha de ir com ele à enfermaria. Tinha de ajudá-los a lavar, vestir, comer, e dar-lhes carinho para que não sentissem tanto as saudades de casa, para além dos jogos, brincadeiras, e actividades colectivas. Todos os dias íamos à praia, e, obviamente, não podíamos perder ninguém, ou permitir que ocorresse algum acidente… 

 

Para muitas destas crianças, era a única oportunidade que tinham de ir à praia, comer todos os dias convenientemente, ver um cinema, teatro, biblioteca, ou irem dar um passeio até ao Castelo dos Mouros e Palácio da Pena, em Sintra. Aprendi muito com estas crianças e este trabalho. Não era apenas o sentido de responsabilidade que estava em causa (e era muita responsabilidade!), era o que dávamos e recebíamos.

 

Pequenas memórias - Fernanda Gil, 2006

© Fernanda Gil.

Alhos Vedros - 2014 / 2017

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