OLHARES COM SENTIDOS
FERNANDA GIL
PÁGINA PESSOAL
TORRE DO INFERNO
A Torre do Inferno encontra-se junto à Estrada Nacional n.º 10 em Coina, freguesia do Concelho do Barreiro, dentro da propriedade do famoso e controverso Manuel Martins Gomes Júnior, o “rei do lixo”, que deu brado em Lisboa e na margem sul do Tejo nos primeiros decénios do século XX.
A quinta onde se encontra a também chamada Torre de Coina chamava-se no século XVIII Quinta de São Joaquim e era um pouso, lugar de recreio e passagem entre as duas bandas do Tejo e deste para o Além-Tejo (Alentejo), que “mandou fazer a sua fazenda (expensa)” Joaquim de Pina Manique, desembargador da Casa da Suplicação, “cavaleiro fidalgo da Casa de Sua Majestade e professo da Ordem de Cristo no Mestrado da mesma Ordem”, irmão mais novo do célebre Intendente-Geral da Segurança Pública no reinado de D. Maria I, Diogo Inácio de Pina Manique, o ultra-conservador que fundou a Casa Pia de Lisboa. Ainda hoje a marca de D. Joaquim está patente na quinta, numa inscrição lapidar encimada pela Cruz de Cristo incrustada no muro da propriedade. Com as mudanças políticas ocorridas no século XIX e a dispersão da família Pina Manique, a propriedade entrou numa fase de abandono e decadência até que, nos finais desse século, foi comprada pelo famoso “rei do lixo” que vinha construindo um império a partir do nada!
Manuel Gomes Júnior nasceu em 11 de Novembro de 1860 no seio de uma família humilde em Santo António da Charneca, no Barreiro, filho de Manuel Martins e de Maria Gertrudes Martins. Desde cedo prometera a si mesmo mudar da vida miserável e tornar-se rico, e foi o que fez! Após ter trabalhado durante algum tempo como marçano em Lisboa e juntado algumas economias, regressou ao Barreiro onde comprou uma padaria de venda de cereais; para ter autonomia no negócio, adquiriu o moinho de água de moagem de cereais em frente à Quinta de São Vicente, que também viria a ser sua e onde fundaria a Sociedade Agrícola da Quinta de São Vicente. Posteriormente, com a compra de propriedades rurais a norte e a sul do Tejo, sobretudo no Alentejo, fundou a Companhia Agrícola de Portugal, contribuindo consideravelmente para o desenvolvimento sócio-económico da lavoura e agropecucária no país, mormente na região sul.
Diz-se – sem prova nenhuma mas originada no bulício inflamado das inimizades republicanas/monárquicas do seu tempo – que após assinar um contrato com uma seguradora ele próprio terá ateado fogo ao moinho, e como nunca se provou que não tivesse sido acidente foi indemnizado com uma elevada quantia. Com parte desse dinheiro comprou uma pequena propriedade e entregou-se à especulação agrícola, emprestando dinheiro, sob pesados juros, aos proprietários vizinhos de Coina para cultivarem os seus terrenos. Numa época em que as colheitas foram más e os agricultores não tiveram como saldar as dívidas contraídas, Manuel Gomes não lhes perdoou: anexou as parcelas dos devedores à sua, formando assim uma quinta com mais de 300 hectares.
Já em 1908 era dono da Quinta da Trindade na Azinheira, Seixal, tendo chamado a si a reconstrução do edifício apalaçado e construído ainda o «castelinho», nesse que fora propriedade de D. Brites Pereira, sobrinha de D. Nuno Álvares Pereira, que aí fundara a ermida da Senhora da Boa Viagem para os religiosos da Ordem da Santíssima Trindade, extinta em 1834. Foi assim, também, que a partir de 20.5.1897 (segundo a Carta de Arrematação do Ministério das Finanças) a Quinta do Manique ou de São Joaquim ficou na sua posse, tudo graças aos seus dotes de especulador, diz a vox populi sentenciosa.
Tornou-se um grande proprietário, e havia que rentabilizar o terreno. Dedicou-se à suinicultura após firmar um contrato com um grande negociante e exportador de carnes de Lisboa. Alugou-lhe o espaço da quinta para criação de porcos e participou no negócio de exportação de carnes. Pouco tempo depois o seu sócio morreu e Manuel Gomes assumiu o controlo total do negócio, passando a ser um rico negociante de carnes. Devido à sua inclinação natural para os negócios e ao seu carácter empreendedor, atingiu o auge ao assegurar o controlo da recolha dos lixos em Lisboa (à altura os lixos eram apenas matéria orgânica) com a arrematação feita com a respectiva Câmara em 27 de Março de 1907, transportando-os para Coina nas suas cinco fragatas para servirem de alimento aos porcos, não gastando com isso um só tostão! Morreu na sua Quinta da Alfarrobeira, na Estrada do Calhariz de Benfica, e foi enterrado um dia após a sua morte, no cemitério do Alto de São João em 9 de Novembro de 1943, numa simples cova aberta à última hora, nas traseiras de majestosos jazigos, tendo por última mortalha quatro tábuas de pinho forradas de pano preto e por acompanhamento, além de raras pessoas de família, meia dúzia de amigos que conseguiram romper a discrição em que o acto se envolveu. Vítima de doença prolongada, ainda assim a lenda popular insiste que ele morreu em circunstâncias estranhas cujas causas nunca foram apuradas.
Após a sua morte, a Quinta da Torre de Coina passou para o seu genro António Zanolete Ramada Curto e tornou-se o principal centro agrícola da região. Em 1957 vendeu-a a José Mota, irmão dos grandes proprietários e industriais de curtumes Joaquim Baptista Mota e António Baptista Mota, que mudaram o nome do imóvel para Quinta de São Vicente fundando aí a Sociedade Agrícola da Quinta de São Vicente, transformando a propriedade numa importante exploração pornícola. Igualmente melhorou-se o seu jardim palaciano, o labirinto de arbustos, a escadaria de pedra, o pomar e as palmeiras em volta da capela.
Em 1972 a herdade foi novamente vendida, desta vez a António Xavier de Lima, conhecido urbanizador da margem sul. Este afirmou publicamente possuir um projecto para reconverter a quinta e transformar o palácio numa pousada com cerca de 85 quartos. Mas na noite de 5 de Junho de de 1988 o palácio foi totalmente devorado pelas chamas de um incêndio, que não poucos dizem ter sido ateado de propósito. Xavier de Lima disse depois ao jornal A Capital que o restauro do imóvel implicava um investimento não suportável. Desde aí o palácio com a torre e a quinta em volta encontram-se num total abandono, já tendo abatido toda a parte intermédia e o terceiro terraço do edifício, a cada dia transformando-se mais e mais numa enorme ruína este que é o ex-libris da histórica vila de Coina cuja autarquia, sem dúvida, deveria cuidar melhor do seu património, muito mais sendo este um exemplar de arquitectura única no país construído com os mais ricos materiais da época.
Manuel Martins Gomes Júnior e a sua família nunca habitaram esta Quinta da Torre (por as suas obras terem sido interrompidas cerca de 1913-1914, deixando o imóvel incompleto), mas o facto de tê-la adquirido e lhe imposto o aspecto realengo imponente como espécie de memória póstuma do primitivo pouso cujo donatário estava ligado à Casa Real, sendo também ele “rei” (do lixo) por certo quis ter um palácio condigno com tal título, ou melhor, alcunha, que os mais desaforados de Coina também apodavam de “porco sujo”. Com isso descurava-se o óbvio da sua intenção: contribuir para a higiene pública da capital então frágil em cultura profiláctica, ao mesmo tempo que a sua perspicácia empresarial via nisso uma forma gratuita de aumentar a sua riqueza. Diz a vox populi que foi a sua vingança republicana sobre o regime monárquico, pousando no lugar dos antigos cortesãos lixo e porcos.
À propriedade rebaptizou-a com o novo e inquietante nome de Quinta do Inferno, com a sua Torre do Diabo que mandou fazer em 1910, dizendo-se que transformou a capela da quinta em armazém e estábulo (sendo certo que em 1906 abriu uma escola dotada na mesma que ofereceu à educação gratuita dos seus empregados e filhos), e às suas fragatas transformadas em arrastos do lixo deu-lhes os nomes de Mafarrico, Mefistófeles, Demo, Diabo, Satanás, Belzebu, Horrífico, Caronte, Plutão, Averno e outros mais mimosamente escolhidos para chocar a conservadora e católica flora. Por certo tratou-se de uma provocação desaforada ao regime eclesiástico secular que a recente Revolução de 5 de Outubro depusera, mas com isso ficou até hoje com fama de ateu anti-deísta impenitente dotado de um feitio irregular e pouco afectivo.
Casado com Maria de Oliveira Bello (1871 – 23.7.1967), às suas duas filhas legítimas pôs os nomes de Ceres e Cibele, e às ilegítimas anteriores ao casamento, os de Proserpina e Flora, enquanto um sobrinho recebeu o nome de Libertino e a um outro afilhado quis pôr-lhe o nome de Livre Pensador, e como tal não foi possível após reflectir um instante mandou que lhe chamassem Rodas Nepervil, que é o nome anterior lido ao contrário. Estes nomes são já um sinal claro de erudição requintada de Manuel Martins e também, aparte a óbvia provocação desaforada ao regime eclesiástico, indício da sua afiliação e perfilha secreta do pensamento hermético greco-latino adoptado sobretudo pela Maçonaria do tempo.
O anti-deísmo do ateu e opulento Manuel Martins terá sido mais uma blague provocatória de fachada que propriamente uma convicção íntima, provocação como essa de repreender a esposa sempre que a via pôr azeite nas lamparinas do oratório da capela da sua quinta de Benfica: “Maria, não é melhor guardares esse azeite para regar o bacalhau e as batatas?” Em contraste flagrante com esse aparente zelo jacobino misturado a um apreciado gosto anarquista de bon-vivant provocateur, deixou no seu testamento (onde consta a fortuna fabulosa orçada em 34.552.370$80 contos (24 milhões e 152 mil escudos em bens imobiliários, e 9 milhões e 50 mil escudos em bens mobiliários), segundo a Relação de Bens a 24 de Outubro de 1943, sendo notário José Valente de Araújo, de Lisboa, e a fonte do Ministério das Finanças o processo n.º 7385 de 9 de Novembro de 1943) a doação de larga quantia em dinheiro às Misericórdias Franciscanas da sua escolha prévia: duzentos e cinquenta contos em dinheiro à Santa Casa da Misericódia de Lisboa; duzentos e cinquenta contos à Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal; duzentos e cinquenta contos à Santa Casa da Misericórdia de Setúbal; duzentos e cinquenta contos à Santa Casa da Misericórdia do Barreiro, com a condição, quanto a essa última legatária, de manter permanentemente uma escola primária mista em Coina, satisfazendo todas as despesas da mesma. Isto além de ter contribuído amplamente para substituir a desmoronada capela de Nossa Senhora dos Remédios de Coina por uma outra igreja mais condigna, e de ter decidido e promovido a construção da sede da Sociedade Filarmónica União Agrícola 1.º de Dezembro, em Santo António da Charneca. Assim se revelou tão humanista quanto religioso que no âmago era mas escondia…
Além disso, o Palácio e Torre da Quinta do Inferno apresentam sinais claros de simbologia com fundo deísta, conhecimento esse que Manuel Martins Júnior terá recolhido no meio esotérico em voga na época, ou seja, na própria Maçonaria Iniciática, no que tem mais de simbológica e espiritual e menos de política e temporal. Este está no próprio simbolismo do edifício que causa estranheza geral, menos àqueles que detêm o conhecimento exacto do seu significado iniciático: os arquitectos maçons que edificaram o imóvel e deixaram os sinais secretos da sua afiliação esotérica, por certo de acordo com a vontade expressa do proprietário, mesmo acaso ou decerto despossuído de maiores profundezas do pensamento esotérico.
A ser maçom, o “rei do lixo” terá com certeza frequentado a Loja “Boa Viagem”, na Moita, e a Loja “Esperança de Porvir” (… a sociedade republicana), no Barreiro. Esta funcionava no primeiro andar do edifício hoje ocupado por um restaurante no Largo Alexandre Herculano. Tinha como extensão gremial a Sociedade Democrática União Barreirense – Os Franceses.
O símbolo mais evidente da porventura afiliação de Manuel Martins Gomes Júnior ao pensamento esotérico está no seu ex-libris (gravado nos objectos pessoais, nas fragatas, nas alfaias agrícolas e até nos badalos do gado, de que é exemplo a foto acima): uma meia-lua erecta com as pontas voltadas para a direita e uma estrela de cinco pontas dentro dela.
No Palácio do Inferno, o sinal mais evidente da sua intenção esotérica está no labirinto, tanto o floral do jardim como o pétreo do palácio, onde circular neste mostrava-se bastante complicado para o visitante, não só como uma demonstração cabal de grandeza e poder pela imponência do edifício em si mas também por ser verdadeiramente um labirinto, cujo significado liga-se inteiramente ao mundo da Tradição Iniciática.
De maneira que o labirinto expressa o caminhar do homem para o interior de si mesmo, para uma espécie de santuário ou cripta misteriosa (representada na cave do Palácio do Inferno) expressando o que há de mais misterioso e sagrado nele. É aí, nessa cripta, verdadeiro templo do Espírito Santo na alma em estado de graça, que se reencontra a unidade perdida do Ser que se dispersara na multidão dos desejos. A chegada ao centro do labirinto, como no fim de uma Iniciação, introduz o Iniciado numa cela invisível, que os artistas dos labirintos sempre deixaram envolta em mistério, ou melhor, que cada um podia imaginar segundo a sua própria intuição ou afinidades pessoais.
O Palácio do Inferno está disposto em três corpos distintos: a torre sobre o edifício (com três níveis, rés-de-chão, primeiro e segundo andares e a cave, o que constitui uma prefiguração simbólica das Três Pessoas da Trindade dispostas em Planos igualmente distintos, como seja: a torre para o mais alto, o Céu ou o Mundo do Pai; o edifício para a Terra santificada pela presença do Filho; a cave para o Inferno ou Infera, “lugar inferior ou interior”, de onde e de si mesmo o Espírito Santo dá à luz a Criação Universal.
Finalmente, tem-se a torre que é uma espécie de espada cravada na cunha ou coina do Concelho do Barreiro. A espada cravada na rocha ou no chão, é simbolismo que pessoalmente já vivifiquei ou realizei algumas vezes, e que levou alguns a vociferarem sobre o que desconhecem absolutamente, tanto no real como no simbólico, ficando-se pela impertinência beata e simplista característica primária da ignorância cabal das profundezas do mundo iniciático.
Esse é o símbolo tradicional do centro axial dum enclave iniciático (ou sistema geográfico) marcado pela espada cravada na rocha, figurando o símbolo astrológico da Terra (um círculo ou um monte coroado por uma cruz) e igualmente a chave da Sabedoria Iniciática, que aqui em Coina e nas redondezas terão sido seus zelosos custódios os primitivos Templários.
O palácio suportando a torre do “rei do lixo”, quer um quer outra repartem-se em três andares, ficando a torre para o Mundo Celeste (Mental, Astral e Etérico) e o palácio para o Mundo Terrestre (Agharta, Duat, Badagas), representando a cave do edifício o ponto de intercessão entre os dois Mundos, ou seja, o Plano Físico, a partir do qual se sobe ou se desce. Por outro lado, o imóvel completo compõe-se de sete andares (incluindo a cave) ou divisões que juntas ao ápodo inferno remetem para a tradição oculta da Torre de Babel cuja história é muito diferente da citação bíblica remetendo para os meados da 4.ª Raça-Mãe, a Atlante, anterior à actual 5.ª Raça-Mãe Ariana.
Talvez Manuel Martins Gomes Júnior não soubesse de todos esses conhecimentos iniciáticos, mas possivelmente alguns dos construtores do seu palácio e torre poderiam possuir fragmentos esparsos dos mesmos, pois que a simbologia do imóvel está em conformidade com a Tradição Iniciáticas das Idades, inclusive o Rio Tejo fazendo a vez de “Mar da Atlântida” em cuja margem se levantou a célebre Torre de Babel, que nesta de Coina servia para o “rei do lixo” subir ao seu topo para avistar as suas vastas propriedades no Seixal, diz a vox populi sempre com explicação simples e prática, mas que não parece verossímil.
Sem dúvida que esta obra foi uma demonstração da sua grandeza e poder, e nisto poderá ter querido celebrar a memória do há muito desaparecido castelo de Coina, destruído durante a reconquista cristã da margem sul do Tejo aos árabes, acontecimento no qual a Ordem dos Templários e a Ordem de Santiago tiveram primazia ainda durante o reinado de D. Sancho I.
Memória sumptuosa dos tempos idos resta a Quinta da Torre de Coina, num avançado estado de degradação. Se não forem tomadas medidas urgentes, este património singular do Concelho do Barreiro e único no País tem morte anunciada, mandando para o lixo mais uma página da História de Portugal como coisa de somenos importância. Deixo o apelo às boas vontades das consciências da autoridade política e da proprietária do imóvel, para que se entendam e acudam rápido a salvar e recuperar a quinta em nome do interesse cultural comum. Por enquanto se mantiver de pé o Palácio de Coina, por certo a memória do “rei do lixo” permanecerá viva!
Por Vitor Manuel Adrião (excertos), com a colaboração do doutor Rui Pires, dedicado investigador da história da Quinta da Torre de Coina e devotado amigo da terra.
Texto Completo em https://comunidadeteurgicaportuguesa.files.wordpress.com/2012/10/torre-do-inferno.pdf