
OLHARES COM SENTIDOS
FERNANDA GIL
PÁGINA PESSOAL
TERRA VERMELHA

Fotografia: Steve Winter
("The Eyes of Children Around the World")
Cantavam canções de crianças, cujo sentido duvidoso as fazia sonhar com nuvens brancas de algodão salpicadas de arco-íris. Os pés descalços eram apenas um pormenor, naquela terra vermelha de sangue onde tudo faltava. Menos o riso das crianças. Correndo ladeira abaixo, numa direcção que podiam imaginar ser o tudo que as viria salvar.
Deitavam-se naquele solo barrento e seco, olhando o céu azul. Era bonito. Semicerrando os olhos, podiam até ver mil cores colorindo aquelas vidas ainda curtas mas que se adivinhavam sem sentido e muito sofrimento. Há muito não chovia na terra dos meninos esquecidos. O sol insistia em brilhar num calor intenso que tudo queimava.
No dia em que amanheceu chovendo, dançaram e cantaram, bebendo a água pura que caía do céu que finalmente se enchera de nuvens. Lavavam os corpos ressequidos de desidratação, numa alegria salpicada de risos. Os adultos tentavam encher recipientes, abrir covas de água barrenta que haveria de ser preciosa.
É estranho como a riqueza de uns não significa nada para outros. Ou a pobreza.
E naquele dia, quando finalmente o sol voltou a brilhar, os meninos esquecidos puderam olhar e ver surgir o arco-íris mil vezes imaginado. Deitados na terra molhada, deliciavam-se observando as cores que agora pintavam as suas vidas, transportando-os para novos sonhos, novas esperanças.
Não conheciam as histórias do ouro encontrado no final do arco-íris. Mas para que lhe serviria o ouro nesta terra de ninguém e de nada?
Sonhavam apenas com água e comida. Alguns queriam aprender a ler. E uma sombra. Era tão bom que existissem árvores e animais naquele campo imenso de tendas e barro vermelho sem fim.
Um dia apareceram os estrangeiros. Tiraram fotografias, levando-lhes a alma em imagens guardadas num pequeno e estranho cartão. E filmaram. Para denunciar a situação, para que o mundo soubesse, disseram. Depois partiram.
Mais tarde vieram médicos e enfermeiras. Trataram os doentes, trouxeram com eles alguma comida e medicamentos. Mas já não lhes podiam tratar da alma.
Essa, há muito lhes fora roubada, quando tiveram de deixar as suas aldeias e fugir para aquele campo montado em terra pintada de sangue.
Restava-lhes a imagem do arco-íris salpicando o céu de cor, numa luz que lhes dava a esperança de que um dia a sua alma lhes seria restituída.
27-02-2016