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COISAS DO ARCO DA VELHA 

SUÉCIA

Fui para a Suécia aos 20 anos. Foi um enorme choque de culturas, mas pela positiva. Foi o acontecimento que mais influência teve na grande mudança que se deu a partir dali, na minha forma de estar na vida, na minha mentalidade, no meu relacionamento com as pessoas, na forma de ver a democracia e os direitos humanos, enfim, fez-me mudar como um todo.

 

Este choque de culturas deveu-se a muitos factos de diferenciação: em Portugal, ou em Alhos Vedros, vila pequena, onde sempre vivera até aí, todos se conheciam, a mentalidade era feita de muitos tabus, muitos preconceitos, muita falta de respeito pelos outros enquanto pessoas independentes e capazes de ter as suas próprias ideias, e até as suas próprias vidas. Todos tinham de se reger pelos mesmos princípios de comportamento social (maioritariamente de influência educacional católica). A forma como falávamos, nos vestíamos, com quem saíamos ou o que fazíamos, tudo era motivo de comentário, maioritariamente maldoso. Não se falava de sexo, as raparigas não saíam à noite, não saíam com rapazes a não ser em grupo, não se namorava sozinho, muito menos se podia ir a uma farmácia comprar a pílula. Tudo servia para maledicência, que alimentava a imaginação de vizinhos e até de amigos.

 

Na Suécia havia já uma grande liberdade sexual, o tema era debatido nas escolas, as jovens podiam tomar a pílula, que recebiam gratuitamente, a partir dos 13 anos, na enfermaria da escola. As pessoas respeitavam os outros pelo que eram, ninguém comentava o que outro vestia ou o que fazia. Não falavam alto, não faziam barulho que incomodasse os vizinhos (se o fizessem e fosse apresentada queixa, podiam até ter de mudar de casa e de bairro). Não havia lixo nas ruas, e cuspir no chão então era impensável.

 

Por outro lado, não havia o sentido de família, ou de comunidade (ou colectivismo) que havia aqui. As pessoas conheciam-se e falavam-se muito pouco. Tinham também um grande sentido de nacionalismo (eram raras as casas que não tinham uma bandeira sueca); as pessoas, adultos e crianças, participavam nas comemorações tradicionais, e davam grande ênfase a usos e costumes, bem como eram muito participativas nos debates, nas opiniões, nas mudanças. Ninguém tinha qualquer receio de se manifestar, contra ou a favor de qualquer coisa, de exigir os seus direitos. Havia também um grande sentido de responsabilidade quanto ao trabalho, e elevado grau de exigência de fazer o melhor, sentido de excelência. O conviver era mais embebedar-se sexta e sábado, domingo dormir, e durante a semana trabalhar. Normalmente, durante a semana, a partir das 8h da noite, não se via ninguém nas ruas. Tudo era diferente de Portugal e do que aprendera até ali.

 

A licença de parto nessa altura fora aumentada de 8 meses para 1 ano (cá eram 3 meses). Os pais (ambos, mãe e pai) não saíam do Hospital antes de provarem que sabiam tratar do bebé, e se necessitassem ensinavam, mas ambos tinham de saber dar o biberon, mudar fraldas, dar banho, etc. Aliás, decorria uma enorme campanha para que os pais dividissem o tempo de licença de parto com as mães, tendo exactamente as mesmas regalias, para que estas não fossem prejudicadas nas suas vidas profissionais.

 

Para além disso, as crianças, ao ingressar num infantário, tinham de ser acompanhadas pelo pai ou pela mãe durante as primeiras semanas, para que se adaptassem. Como eu tomava conta da minha sobrinha de 1 ano, fui eu que fui acompanhá-la nessas semanas de adaptação. 

                  

Devido à capacidade que demonstrei para lidar com as crianças, convidaram-me a ficar a trabalhar com eles. As pessoas eram avaliadas pelo seu valor real, independentemente das suas habilitações literárias, da sua idade, do seu aspecto físico, ou da sua nacionalidade. Pude constatar isso em muitos outros factos.

 

Na Suécia eu encontrei a prova de que as minhas convicções de liberdade, igualdade, democracia, podiam ser uma realidade e não apenas um ideal. Não havia grandes diferenças sociais, porque quem ganhava mais, pagava mais impostos. Assim, o nível de vida era para todos muito semelhante, fosse de um médico ou de um “varredor” de ruas. É claro que o varredor não só não tinha o mesmo estatuto social que em Portugal, como não tinha as mesmas condições de trabalho ou instrução escolar. O respeito pelas pessoas, enquanto pessoas, era total. Não interessava como se vestiam, ou o que faziam. Se ia ao médico, tratava-o por “tu” e pelo nome próprio e vice-versa. Tanto fazia andar a passear o cão vestido de fraque, como com as calças rotas, ninguém olhava ou criticava. O valor das pessoas, pelo que eram, como se comportavam, o que conheciam, era o que realmente importava.

 

O ensino, cuidados médicos, assistência na velhice (os idosos, na sua generalidade, viviam em Lares que tinham todas as condições para manter a sua qualidade de vida – casas grandes, quartos independentes, jardins, actividades individuais e de grupo, passeios organizados, idas às compras, etc.), eram totalmente gratuitos. Os materiais escolares também, bem como muitos dos medicamentos. Porém era exigida responsabilidade total: se faltássemos a uma consulta marcada sem avisar, tínhamos de pagar. Se alguém na rua deixava cair, por exemplo, um papel no chão, qualquer criança lhe tocaria do braço e o faria voltar atrás e apanhar o papel. Nas empresas, os trabalhadores tinham todas as condições de trabalho, desde creches, cantinas e espaços de lazer.

 

Os sindicatos tinham um papel muito activo e importante no desenvolvimento do país, pois actuavam e tinham representantes directamente envolvidos no Governo, instituições de ensino e empresas. A Suécia tinha a organização sindical mais forte do mundo. Os sindicatos tinham o direito legal de eleger dois representantes para a direcção de todas as empresas suecas com mais de 25 trabalhadores. Cerca de 80% dos trabalhadores na Suécia eram sindicalizados. Os sindicatos tanto do sector público como do privado controlavam os fundos de pensões e organizações sem fins lucrativos. Tinham ainda representantes nas negociações referentes ao sistema de ensino, ao sistema de saúde, salários e outros benefícios sociais.

 

Se alguém tinha um projecto de criação de uma associação, instituição ou mesmo empresa, e necessitasse de ajuda monetária governamental, essa ajuda era dada. No entanto, tinham de ser apresentadas contas, regularmente, de como estava a decorrer o projecto. Se ao fim de 1 ano não fossem apresentados resultados devidamente justificados, os fundos teriam de ser devolvidos.

 

Foi também inovador tomar conhecimento do sistema de arquivo que servia para tudo, desde que a pessoa nascia (ou entrava no país para ficar), que se baseava na data de nascimento, ano/mês/dia, formando um número inteiro (ex. 19571212). Este número servia para gerir a que guichet se deveria dirigir para tratar de algum assunto na segurança social, nas finanças, no hospital, ou em qualquer lugar. Pela data de nascimento e um número electrónico, atribuído à nascença, e único para qualquer serviço ou identificação, obtinha-se toda a informação ou assistência (médica, legal, social, formação, etc.). Ficavam igualmente registados os actos ilícitos: se fosse apanhado várias vezes alcoolizado, não poderia comprar bebidas alcoólicas fosse onde fosse (as bebidas alcoólicas eram vendidas em lojas próprias e não nos supermercados); se falhava o pagamento de uma prestação, não poderia mais comprar fosse o que fosse a prestações, pois apareceria a informação, mesmo que noutra cidade; e assim por diante. Estas regras, sobretudo no que respeitava ao álcool, levavam a comportamentos extremos: muitas vezes se observavam pessoas à porta dessas lojas oferecendo carros de supermercado cheios, ou dinheiro, para que outra pessoa comprasse uma garrafa de bebida para elas.

 

Vivia numa cidade universitária, Lund, no sul da Suécia. Como em toda a Suécia, existiam vários lagos e bosques. Sendo um país extremamente organizado, não existia um milímetro de terra que estivesse ao abandono, fosse na cidade ou no campo. No campo, pelo meio das grandes cearas, podíamos observar caminhos alcatroados. Nos bosques, que tinham zonas verdadeiramente impenetráveis, existiam caminhos que tinham sempre indicado: o percurso, o comprimento em km, para que tipo de caminhadas era indicado. O Estado apropriava-se dos terrenos que não pertenciam a ninguém ou eram abandonados. Assim, passavam a ser cultivados pelo Estado, com uma planta a que chamávamos grelos, por se parecer muito com os grelos de couve portugueses, que tinham uma flor amarela e serviam para fazer margarina vegetal; outros tinham jardins, pomares de macieiras ou morangos. Era indicada à população o dia e hora a que se iniciava a colheita livre destes frutos, e quando terminava. Ninguém quebrava as regras, e praticamente toda a gente ia com cestinhos colher os frutos.

 

Em Lund viviam muitos refugiados políticos (estatuto com que o meu irmão lá ficara também), de várias partes do mundo, especialmente do Chile (as perseguições, tortura, e execuções cometidas pelo ditador Pinochet haviam ocorrido em 1973). Existia uma biblioteca enorme, com livros e jornais em todas as línguas do mundo, incluindo o português. Era assídua nessa biblioteca, não apenas para ler os jornais portugueses, mas também porque a cafetaria era o ponto de encontro dos estrangeiros. Aí conheci muitos refugiados, sobretudo latino-americanos, incluindo um chileno que tinha sido fuzilado… acordara depois numa vala comum, e fugira, tendo sido ajudado a sair do país. Mostrava, com orgulho, a radiografia onde se via a bala que ainda tinha alojada, por não poder ser retirada, junto ao coração. Conheci gente muito interessante, experiências diferentes, culturas diversificadas – tudo me enriqueceu.

 

Poderia escrever páginas e páginas sobre a Suécia e a influência que teve na minha formação enquanto pessoa, que nunca diria tudo…

 

Pequenas memórias - Fernanda Gil, 2006

© Fernanda Gil.

Alhos Vedros - 2014 / 2017

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