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COISAS DO ARCO DA VELHA 

AQUEDUTO

Cedo me apercebi que a questão da liberdade não era igual para todos. Os meus irmãos mais velhos andavam então já bastante envolvidos nas lutas de oposição à ditadura (de Salazar, e mais tarde de Marcello Caetano, que lhe sucedeu na chefia do Governo).

Com os meus 11 anos ia muitas vezes a uma sala secreta, na torre da igreja, onde existia uma máquina de stencil, para imprimir comunicados ou panfletos, cujos textos, necessariamente curtos, falavam contra a ditadura, ou apelavam a greves, ou a direitos iguais para as mulheres. Como era muito nova, e frequentávamos todos a Igreja, era enviada pelos meus irmãos, porque não levantava quaisquer suspeitas. Também cheguei a andar com eles a distribuir esses mesmos panfletos, à noite. Era muito engraçado, porque tínhamos de vestir uma roupa que não voltaríamos a vestir durante cerca de 1 mês, cobrir os cabelos, e fugir assim que alguém abrisse uma porta ou algo do género (ficava sempre alguém dentro de um carro, ligado e escondido, pronto a arrancar dali para fora).

Para dizer a verdade, não tinha grande noção do perigo, naquela altura era tudo uma aventura muito aliciante. Tinha também muito mais liberdade para sair de casa do que qualquer das minhas amigas, pois saía com os meus irmãos. Nessa altura não se falava em partidos, toda a gente era simplesmente da oposição, e participava-se em tudo o que acontecia contra o Governo. A única organização de que me lembro de ouvir falar e distribuir comunicados identificados, era o MDM (Movimento Democrático das Mulheres).

Uma vez fui menos cuidadosa, e coloquei um panfleto numa porta entreaberta, na Rua Vasco da Gama. A moradora veio à porta e começou a gritar que ia chamar a PIDE, enquanto outros també assomavam, e nós fugíamos rapidamente no carro que nos esperava. Passados poucos dias comecei a ser perseguida por um indivíduo dessa mesma rua, que me reconhecera. Como era recomendado eu nunca respondia às provocações, mas relatei ao grupo o que se passava. Passado pouco tempo o indivíduo levou uma valente tareia e nunca mais me chateou. Eu tinha então 12 anos. Depois deste episódio, algumas das minhas amigas da escola foram proibidas de andar comigo, pois os pais receavam que a PIDE os perseguisse, como já perseguiam uma das minhas irmãs, que também discursara num comício da oposição.

 

Com 13 - 14 anos comecei também a fazer parte, com 2 das minhas irmãs, de um grupo que cantava músicas de intervenção originais, o “Aqueduto”. A consciência política era então já bastante mais elevada. Cantámos muitas vezes com Zeca Afonso, José Jorge Letria, Francisco Naia, e outros. Estes eram sobejamente conhecidos na altura (e também após o 25 de Abril), pela sua intervenção contra o regime de ditadura fascista, através da música, nos comícios, colóquios e outras manifestações, bem como na imprensa. Também muitas vezes íamos para cantar e vinham avisar-nos, a meio caminho, para que voltássemos para trás, pois a PIDE estava à nossa espera.

 

Tinha então já perfeita consciência de que não podíamos ler qualquer livro (eu devorava todos os livros da biblioteca, que primeiro era ambulante, depois passou a ser agregada à Junta de Freguesia, mas era da Fundação Calouste Gulbenkian), não podíamos reunir-nos livremente, não podíamos criticar o Governo, e recebíamos muito pouca informação do exterior. Jornais, televisão, rádio, livros, teatro, cinema, tudo era censurado. Muitas vezes lia livros e jornais que as minhas irmãs traziam para casa às escondidas, sempre como algo muito “secreto”. Lembro-me especialmente de livros com fotos da guerra em Angola, Moçambique e Guiné, talvez porque nessa altura o meu irmão mais velho, Carlos, que já fizera a tropa, foi chamado de novo, para embarcar para África, e fugiu do país, para não ter de ir para a guerra do Ultramar, que se agudizara.

 

A canção de intervenção, como lhe chamávamos, interpretada por cantores como os citados atrás, pelo “Aqueduto”, e muitos outros, mais ou menos conhecidos, tinha um papel muito importante na divulgação das mensagens da oposição.

 

Era um meio muito mais eficaz que outras formas de cultura, como o teatro ou os livros, porque era mais fácil de fazer chegar à população, embora não pretenda minimizar as outras formas, que também tiveram grande importância neste campo. Mas era muito mais fácil impedir o acesso a um livro, fazendo com que ele nem sequer chegasse ao mercado, do que impedir que as canções chegassem à população, pois mesmo que proibissem a sua edição em disco, ou a sua passagem na rádio, havia sempre a possibilidade de ser cantada pessoalmente, em público. Apesar das palavras disfarçadas, metafóricas, subentendidas (para que passassem a censura), era tudo muito bem compreendido, e acessível a qualquer nível de educação, pois as músicas eram, muitas vezes, de cariz popular. Por outro lado, as pessoas tinham medo de ser apanhadas com um panfleto que dizia algo contra o poder instituído, mas a canção era (e é) uma forma fácil de chegar à população massivamente. Não há como não permitir que seja ouvida, se o quisermos, a não ser que a proíbam (muitas eram proibidas, mas havia forma de “dar a volta”, outras simplesmente não chegavam ao público). Zeca Afonso, foi, talvez, o nome mais emblemático, e que ficou para a posteridade, desta forma de luta.

 

A partir se 1969, segundo as minhas lembranças pessoais, a luta anti-fascista tomou proporções bastante mais acesas. Nesta zona era frequente haver greves, comícios, colóquios, e pequenas manifestações, que rapidamente dispersavam, quando aparecia a polícia a cavalo e a GNR com os bastões carregando sobre toda a gente. Nos comícios, que ocorriam nas colectividades ou cinema da vila, e também no Barreiro e Baixa da Banheira, existiam planos de fuga pré-preparados, caso se suspeitasse de algum desconhecido, ou se alguém avisasse que vinha lá a PIDE. Foi também por essa altura que a minha família foi avisada de que a PIDE andava a vigiar-nos, e começámos a destruir livros e panfletos que existiam lá por casa. Receávamos qualquer desconhecido bem vestido, ou de carro, que andasse a rondar nas imediações. Espreitávamos através dos cortinados antes de sair, sempre com receio de estarmos a ser seguidos. Íamos a reuniões secretas, realizadas no meio de um pinhal ou na casa de alguém, disfarçados, e usando nomes falsos. O mais engraçado é que íamos em grupo, a pé, noite fora, cantando durante todo o caminho.... Em 1972, eu já tinha bastante consciência da opressão, da censura, da falta de informação, impostas pelo regime.

 

No ano seguinte, os meus pais foram a Espanha encontrar-se com o meu irmão Carlos, que veio da Suécia, porque este não podia entrar em Portugal, pois seria imediatamente preso. Eu preferi não ir, e pela primeira vez tive férias separada da família, indo para a Fuzeta com uma amiga, onde ficámos no Bairro dos Pescadores, na casa da avó dela, que era contrabandista. Mas esta é outra história...

 

Pequenas memórias - Fernanda Gil, 2006

© Fernanda Gil.

Alhos Vedros - 2014 / 2017

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