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PAI

A mesa da cozinha tinha um estrado. Gostava de me agachar no estrado da mesa da cozinha, protegida pela toalha de quadrados azuis que caia leve, quase até a baixo. Passava bastante tempo a brincar, sozinha, no estrado da mesa da cozinha.
 

Às refeições era uma mesa cheia. O meu pai ocupava o topo. Muitas vezes bebia o vinho tinto numa tijela, misturado com caldo da sopa. Comia a correr, para ir sorrateiramente pelo estrado, até chegar às pernas do meu pai e me sentar no seu joelho. O meu irmão, amuado, esperava pelo final da refeição para se sentar no outro.
 

Ao pequeno almoço olhava fascinada quando fazia um furinho em cada canto de um ovo fresco, e o sorvia por inteiro...

Quando ia trabalhar, eu e o meu irmão lutávamos para ocupar um pedal e o selim da bicileta até à rua. Depois, os beijos da ordem, e lá seguia para a CUF. Anos e anos, sempre de bicicleta, chovesse ou fizesse sol...
 

Um dia em que ia trabalhar na noite de ano novo, lá fomos montados no pedal e no selim. No final, o meu pai despediu-se com uma "até para o ano". Sem compreender, e parecendo-me que era coisa de muito tempo, comecei a chorar. As minhas irmãs riam, e tentavam explicar que era só até ao dia seguinte, mas a noção de tempo, de grandeza, vai diminuindo apenas na proporção em que vamos crescendo.
 

Era o meu pai que nos deliciava com história antigas de miúdos, que mais tarde haveriam também de fazer as delícias dos netos.
 

Quando estava em casa, o meu pai era o único que ia aconchegar-me a roupa e dar-me um beijo na testa, quando eu já estava a dormir. Se estava acordada, dizia apenas um doce "boa noite" envergonhado, mas não havia beijo. Depressa aprendi que tinha de ter os olhos fechados, e descansar tranquila para ter só para mim aquele momento de carinho. Hábitos da terra, da vida dura, onde se aprende que os homens têm de ser duros e nunca choram.
 

Um dia vi o meu pai chorar, falando com a minha mãe sobre as dificuldades da vida, e foi um choque. A partir desse dia, sempre que ia até à arrecadação, ia pé ante pé, ansiosa com o que iria ouvir ou encontrar. Não foi a única vez que vi o meu pai chorar, mas isso só foi muitos anos mais tarde...
 

Do meu pai herdei a criatividade, a enorme sensibilidade, a sinceridade, a honestidade, a humildade, a versatibilidade, a coragem, a capacidade de inovar e de responder a qualquer desafio. E também o gosto pela terra. E a capacidade de amar.

Já mais velha, apenas o meu pai passeava comigo, conversando calmamente, perguntando-me o que queria, o que sentia, acerca disto e daquilo.
 

Era com o meu pai que ia a Janeiro de Cima, em excursões organizadas pelo pessoal do Cabeço. Nem a minha mãe, nem os meus irmãos queriam ir.
 

E mais velha ainda, já casada, depois divorciada, com a minha filha que criei sozinha desde os 6 anos de idade, foi sempre ele também que constantemente me perguntava se precisava de alguma coisa, se tinha dificuldades, se estava tudo bem.

A tua bisneta adora-te apenas pelas histórias que lhe conto de ti. E adora Janeiro de Cima. Como nós.
 

Sinto muito a tua falta, pai. Queria ter-te dito que te amo, mas não estava nos nossos hábitos dizê-lo, assim...

© Fernanda Gil.

Alhos Vedros - 2014 / 2017

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