OLHARES COM SENTIDOS
FERNANDA GIL
PÁGINA PESSOAL
COISAS DO ARCO DA VELHA
SOLIDARIEDADE

A minha mãe, como católica convicta que sempre foi, fez parte, durante muitos anos, de diversas organizações de beneficência de senhoras que frequentavam a Igreja, entre elas a “Conferência de S. Vicente Paulo”, ligada à “Caritas Portuguesa”. As senhoras ricas da terra faziam todas parte destas organizações, eram simpáticas connosco, convidavam até a minha mãe a ir beber chá a casa delas uma vez por outra. Mas não sujavam as suas mãos na farinha, nem apareciam para distribuir os bens. Apenas o Padre Zé e sua irmã, a menina Emerenciana, apareciam com regularidade, com os seus modos desajeitados e tímidos, a que eu achava muita graça.
Como tínhamos uma arrecadação no quintal, separada da casa principal, era para lá que enviavam roupas vindas de todo o mundo, especialmente Estados Unidos da América (EUA), leite em pó, farinha e outros bens. As pessoas mais carenciadas iam, assim, regularmente a minha casa para levar os seus avios. Eu adorava ajudar a minha mãe nesta tarefa, porque me deixava tirar as medidas de farinha para os sacos de pano branco, ou simplesmente porque vinham sempre muitas crianças e eu gostava de toda aquela movimentação. Também já compreendia bastante bem que não éramos muito diferentes, já que também nós ficávamos com roupas (que eu detestava e tinha vergonha de vestir, pois eram muito diferentes das usadas pelas minhas colegas), e muitas vezes a professora mandava recado aos meus pais porque estavam atrasados a enviar os 10 tostões que tinham de pagar na escola.
Lembro-me especialmente de uma vez ir a correr para essa arrecadação logo que cheguei da escola, e estacar de repente, escondida junto à porta, pois ouvi o meu pai a chorar, junto de minha mãe, o que me chocou profundamente. Queixava-se de que não tinha dinheiro para pagar qualquer coisa que nem percebi, mas era certamente importante, para o levar ao limite (“os homens não choram!” - sempre dizia a minha mãe). Fugi pé ante pé para que não dessem por mim, mas nunca esqueci a dor que senti no meu pai.
Esta experiência de solidariedade social que partilhei com a minha mãe, ainda muito pequena, haveria de me ficarna memória, e mais tarde haveria eu de vir a prestar trabalho de voluntariado em diversas áreas, e ao longo da vida, tentar sempre ser solidária para com os mais necessitados. Naquela altura, como ao longo de toda a minha existência, este tipo de trabalho social tem-se verificado muito importante, pois o Estado não tem sido suficiente e eficaz a dar resposta às necessidades dos mais carenciados (ainda hoje).
Actualmente, para além de continuar ligada a diversas colectividades de Alhos Vedros, exerço também trabalho de voluntariado em colaboração com uma IPSS (Instituição Privada de Solidariedade Social). Não faço parte da religião que guia os princípios dessa instituição, mas isso não me impede de ajudar quem necessita, e colaborar com a organização que me permite fazê-lo.
Há coisas que se nos entranham na pele e nos acompanham por toda a vida, de uma forma quase intuitiva e por vezes sem mesmo darmos por isso.
Por outro lado, ajudar os outros ajuda-nos a relativizar muito os nossos próprios problemas, e torna-nos, sem dúvida, mais abertos e tolerantes perante as diferenças.
Pequenas memórias - Fernanda Gil, 2006