
OLHARES COM SENTIDOS
FERNANDA GIL
PÁGINA PESSOAL
DEMOCRACIA

Fotografia: Fernanda Gil
São estranhos os desígnios do destino... e eu nem sei se isso de destino existe.
A minha vida está sempre virada de pernas para o ar. Eu estou sempre deslocada, vejo coisas que parece que mais ninguém vê, entendo a milhas o espectável que parece que mais ninguém espera.
Há quem chame democracia àquilo que estamos a viver no nosso país. Eu vim com defeito desde que vivi na Suécia, só pode ser isso, porque entendo tudo ao contrário. De pernas para o ar. Ou deslocada do meio em que vivo.
Não consigo entender a democracia sem as pessoas respeitarem as outras pessoas. Mesmo as que não conhecem.
Não entendo que haja democracia num mundo em que as pessoas não conhecem e muito menos fazem valer os seus direitos, mas também não cumprem os seus deveres.
Não há democracia onde consecutivamente trabalhadores prejudicam a vida de outros trabalhadores, às vezes de forma irreversível, apenas porque têm prazer em prejudicar para mostrar que estão numa suposta posição de poder sobre o outro. A realidade é que isso apenas acontece porque as pessoas não sabem os seus direitos, ou se sabem têm medo de os fazer valer. Não exigem nada, e se alguém exige ainda fica mal visto. É conflituoso...
Não pode ser chamada democracia um estado em que não há Justiça para quem não tem dinheiro, onde não há Educação para quem não tem dinheiro, onde não há Saúde para quem não tem dinheiro.
E a verdade é que a esmagadora maioria dos portugueses não tem dinheiro. Não porque seja desempregado, mas porque é explorado até à medula, com salários de miséria e sem quaisquer direitos.
Não pode ser chamada democracia quando trabalhadores não ganham o suficiente para pagar as contas normais do dia-a-dia, não ganham para comer e para alimentar condignamente os seus filhos. Um país que faz crianças passarem fome, não pode ser designado de democrata.
Não há democracia onde a maioria dos trabalhadores tem medo de falar e ter como consequência a perda de emprego, ou mesmo ser ostracizado socialmente. Onde praticamente 100% dos gestores ao mais alto nível, e por aí abaixo, são colocados por cunhas e não por competências. E os subordinados são promovidos pela mesma ordem de ideias.
Não há democracia onde o fosso entre os que vivem muito bem e os que vivem muito mal é cada vez maior, e estes é que suportam aqueles.
Não há democracia onde as pessoas vivem na pobreza e apenas se preocupam em mostrar que não são pobres em vez de se preocuparem em lutar pelos seus direitos e exigir que estes sejam cumpridos.
Não há democracia onde pessoas descontam uma vida inteira 11% do seu salário acrescido de 23,5% por parte da entidade patronal e isso não lhes garante cuidados de saúde, nem assistência médica e muito menos uma reforma condigna. E depois há os chamados sub-sistemas, onde outros trabalhadores têm direito a quase tudo. Não pode ser chamada democracia quando o próprio Estado divide os cidadãos em cidadãos com direitos e cidadãos sem direitos, criando desigualdades de consequências graves.
Não há democracia onde gestores incompetentes gerem pelo terror, e trabalhadores inconscientes vergam a essa gestão danosa.
Não há democracia num país onde se baixa a taxa de desemprego à custa de colocar pessoas a cumprirem horários completos de trabalho como qualquer outro trabalhador, têm os mesmos deveres que os outros trabalhadores, e não recebem salário, apenas um suposto subsídio de refeição e transporte que pode variar entre os 90 euros e os 200 e poucos euros.
Dizem que a memória colectiva é tramada, que as pessoas esquecem demasiado facilmente o que acontece à sua volta, mesmo que as tenha atingido como um murro no estômago naquela altura.
Isso é estranho para mim, porque eu não esqueço, às vezes quero mas não consigo esquecer.
Está bem vivo em mim o antes e o depois do 25 de Abril de 74. As prisões do antes e do depois. E muitas outras coisas.
Não há democracia em Portugal, nunca houve. Houve tentativa de haver, mas quem conheceu uma verdadeira democracia como eu conheci, sabe que nunca chegámos lá. Porque nunca houve igualdade de oportunidades e igualdade de direitos nas mais fundamentais obrigações do Estado para com os seus cidadãos.
Talvez seja porque a memória colectiva falha tão facilmente que estamos na situação que estamos actualmente. Tem de se culpar alguma coisa. O Sistema. O Governo. Nunca as pessoas.
Podem chamar-me o que quiserem, mas o que estamos a viver no meu país, não é uma democracia. Inventem outro nome.
Simples reflexões
Fernanda Gil / Outubro 2015