OLHARES COM SENTIDOS
FERNANDA GIL
PÁGINA PESSOAL
ORIGENS
COISAS DO ARCO DA VELHA


Nasci numa quinta. E quando digo “nasci”, significa literalmente que aí nasci. Não numa Maternidade, mas na casa de meus pais, que na altura era uma verdadeira quinta, com agricultura, pomar e animais, como vacas, porcos, galinhas, coelhos e uma burra branca (é a única recordação que tenho da quinta!).
Todos os meus irmãos e irmãs nasceram em casa, embora os mais velhos tenham nascido em Janeiro de Cima, aldeia de origem dos meus pais, no concelho do Fundão, e hoje considerada a capital da “Aldeias de Xisto”. Sou a mais nova de sete filhos (2 rapazes e 4 raparigas), e a minha mãe já tinha 41 anos quando eu nasci.
Saí da quinta aos 2 anos de idade, mas sempre vivi em casas com hortas, animais (coelhos, galinhas, etc.), árvores de fruto. Isto é importante, não apenas porque ainda hoje o meu sonho seria viver numa quintinha (nada muito grande), mas também porque é a minha primeira referência de liberdade pessoal: poder correr à vontade; brincar à vontade, sem o olhar dos pais sempre a vigiar; colher a fruta directamente da árvore sempre que apetecia; poder pegar nos pintainhos, ou nos coelhinhos… enfim, um sem fim de pequenas coisas que na cidade de então ou de agora seriam impensáveis.
Cresci entre o campo e o rio.
Vivi a maior parte da minha vida perto do centro da vila, embora sempre com a tal parte agrícola, rodeada de campo (pinhal, eucaliptal, grandes quintas) por um lado, e no outro o rio Tejo, então de águas límpidas, e onde apanhávamos de tudo: caranguejos, camarões pequenos, berbigões, ostras, e peixes. Isto dava-nos alguns conhecimentos básicos: sabíamos o que podíamos e não podíamos comer no campo, desde bagas a raízes, pinhões, e outros pequenos frutos, tal como sabíamos colher os bens proporcionados pelo rio. Nessa altura sabia reconhecer facilmente plantas e árvores do campo, bem como animais, nomeadamente as aves, pelo seu canto. Apanhar gafanhotos, quaresmas e grilos, era apenas uma brincadeira para entreter as noites de verão. Mas havia muito mais...
Tínhamos também pequenas praias de areia branca onde podíamos banhar-nos sem medo das doenças de pele. Havia muitos viveiros de peixe e salinas. Os sapais uniam toda a zona ribeirinha, que percorríamos de uma ponta à outra sempre por entre viveiros bem tratados, com portas de água, e caminhos entre eles.
Era junto dessas portas de água que normalmente íamos apanhar caranguejos, munidos de uma rede com cabeças de peixe espada, dadas na peixaria. Os donos dos viveiros andavam sempre por ali vigiando. Não se importavam que apanhássemos os caranguejos, mas não queriam que fizéssemos o mesmo aos camarões, alimento privilegiado dos peixes. É claro que conseguíamos sempre apanhar uma boa sacada, fugindo à frente de um proprietário de viveiro aparentemente furioso... creio que era mais teatro que vontade de nos dar a tareia que nunca deram, fazia parte...
O meu primo trabalhava na extracção de sal nas salinas junto ao moinho de maré, e de vez em quando ia lá com um saquinho, que me enchiam com sal acabadinho de retirar.
Alhos Vedros era bastante industrializada e dava emprego a muitos milhares de pessoas, da terra e arredores, nas fábricas têxteis e nas fábricas de cortiça. Havia ruas inteiras só com pequenas fábricas de cortiça, outras com casas de um lado e fábricas no outro (a maioria tinha como nome o do próprio dono da mesma). Nas traseiras da minha casa havia a Rua das Fábricas, que ainda hoje existe, embora já não constituída apenas por fábricas de cortiça.
Nessa altura havia apenas uma televisão (a preto e branco), na casa do sapateiro do bairro, onde, à noite, se juntava a vizinhança para assistir aos programas mais emblemáticos da altura. Os adultos viam o Festival da Canção, enquanto nós, os pequenos da vizinhança, brincávamos lá fora comendo os rebuçados de açúcar queimado embrulhados em papel vegetal, que ele fabricava e nos vendia por 1 tostão cada. Eram horas de grande animação e convívio. Apenas anos mais tarde começámos a ir ver televisão ao café, e muitos anos depois tivemos televisão em casa.
Pequenas memórias - Fernanda Gil, 2006