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 A TERRA E O PÃO

COISAS DO ARCO DA VELHA

 

O sistema de rega era rudimentar mas eficaz. Ainda me lembro de o meu pai ter uma picota, que essencialmente era constituída por dois troncos longos, um fixo, que terminava em forma de “V”, onde encaixava outro que se movimentava para cima e para baixo, com um peso numa ponta e uma corda com um balde na outra, que descia até à água do poço. O peso na outra extremidade servia para ajudar a içar o balde cheio de água. A água era tirada do poço pelo meu pai, enquanto eu ou o meu irmão, à vez, íamos fechando um dos regos, por onde esta já tinha entrado o suficiente, e abrindo o seguinte, e assim sucessivamente.

Andar pelos regos de terra e água era sempre uma alegria. Por outro lado, o meu pai traçava todo o sistema como se de um arquitecto se tratasse,  com gosto e um toque de artista. Olhando para trás, não tenho dúvidas que muitos dos dotes artísticos que nos caracterizam (filhos, netos e até bsinetos) vêm de meu pai.

 

Este sistema de regos (ou pequenos canais escavados na terra) que entravam sucessivamente na horta, foi utilizado mesmo depois de já termos um motor de rega (que funcionava a gasolina, e mangueiras largas que levavam a água até ao canal principal), e que foi uma enorme evolução na altura.

 

Eu e o meu irmão Zé, 3 anos mais velho que eu, tínhamos também de ajudar o meu pai nas lides agrícolas, consoante a altura do ano. Por exemplo, por altura da sementeira da batata enquanto ele ia abrindo os regos (ou sulcos) na terra, nós íamos colocando os pedaços de batata, espaçadamente, para fazer a sementeira. Estes pedaços tinham sido previamente cortados por ele: cada batata já grelada era cortada metodicamente, de modo que cada pedaço tivesse um grelo. Desses pedaços viriam a nascer as novas batateiras. Noutras alturas, tínhamos de colher as ervilhas, ou as favas, ou os tomates, ou o milho, feijão verde (que crescia em volta de canas, colocadas pelo meu pai, depois de cortadas num canavial que havia em frente de nossa casa), pimentos, consoante a época. O meu pai plantava ainda cebolas, alhos, cenouras, chás (lúcia-lima, erva cidreira), ervas aromáticas (salsa, coentros, hortelã-pimenta). Tínhamos diversas árvores de fruto: laranjeiras, limoeiros, pessegueiro, nespereira, ameixeiras, videiras, marmeleiros, oliveiras, e também uma trepadeira de chuchus e outra de maracujás. Por vezes o meu pai enxertava uma árvore, misturando frutos de diferentes cores, o que me deixava fascinada. Havia ainda as alfaces, plantadas à beira dos regos das batateiras, e os espinafres. Tínhamos, assim, assegurada uma alimentação saudável e rica em leguminosas, frutos, saladas, aves, coelhos e ovos. Durante muitos anos tivemos também porcos e carneiros ou cabritos.

 

Cada um de nós dois (eu e o meu irmão) tinha igualmente, por cada ninhada, um coelhinho e um pintainho para cuidar. Além disso, tínhamos também, cada um, uma pequenina horta que era semeada e cuidada só por nós. Era um despique bastante saudável ver quem conseguia a melhor couve, o melhor feijão verde, a melhor alface, ou as melhores cenouras.

 

Em idade escolar, a ajuda nas lides agrícolas estendia-se aos meus primos: como tínhamos três meses de férias de Verão e éramos todos de idades aproximadas, vinham todos para minha casa, ajudar a colher as batatas, o milho, etc., e depois íamos todos para a quinta do meu tio, ajudá-lo nas mesmas tarefas.

 

Isto metia muito convívio e brincadeira pelo meio, é claro, e muitas aventuras divertidas. Além disso, existiam tradições, que mais tarde se perderam, mas que jamais se apagarão da minha memória: à noite, juntavam-se as minhas tias e tios, as minhas primas mais velhas e irmãs, sobretudo para desfolhar e debulhar as maçarocas de milho, cuja folhagem depois se punha a secar, era rasgada em tiras, e servia para reencher os colchões das camas. Pelo meio, haviam as canções e jogos tradicionais para toda a família. Eram alturas muito bonitas e alegres. Éramos uma família numerosa e muito unida.

Cantar era uma parte importante destes encontros. Cantávamos sobretudo canções tradicionais lá dos lados de Janeiro de Cima. Quando o meu irmão vinha do Seminário, ensaiava-nos a vozes, à capela ou com música tocada por ele, e introduzia novas canções, até uma oprereta num alemão arrevesado que cumpria muito bem o seu objectivo. As canções a várias vozes haveriam de nos acompanhar em todas as reuniões de família durante a maior parte das nossas existências.

 

Após as colheitas, havia ainda muito trabalho a fazer. A minha mãe fazia calda de pimento e de tomate, para os cozinhados; azeitonas retalhadas (que eu detestava ajudar, porque ficava com os dedos negros); compotas diversas (tomate, pêssego, maçã, abóbora) e uma maravilhosa marmelada, que em vez de saber a açúcar sabia mesmo a marmelo.

 

Em tudo tínhamos de ajudar, desde lavar e cortar os frutos ou legumes, ao posterior acondicionamento em frascos de vidro. Os chás eram postos a secar e pendurados em ramos; faziam-se réstias (entrançados) de alhos e cebolas. As batatas eram espalhadas num espaço ladeado por um quadrado de madeira, grande, com um pó para não grelarem, ou apanharem “bicho” (borboletas), sendo depois cobertas com rama de eucalipto, que íamos apanhar ao eucaliptal do Bairro Gouveia. Eram acomodadas na arrecadação, que era escura e fresca (não tivemos frigorífico até eu ser bem crescida, mas mesmo após termos, sobretudo as batatas, alhos e cebolas, eram acomodados da mesma forma). As réstias de cebolas e alhos, bem como os ramos secos, eram dependurados num telheiro mais arejado, junto às coelheiras, onde se guardavam também os fardos de palha que serviam para os coelhos, o milho para as galinhas, bem como ferramentas e outros utensílios da lide agrícola.

 

Pequenas memórias - Fernanda Gil, 2006

© Fernanda Gil.

Alhos Vedros - 2014 / 2017

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